A
moça aproximou-se após esperar alguns minutos na fila da tarde de autógrafos na
livraria e disparou, com um sorriso entredentes, à queima-roupa:
–
Você é feliz?
Respondi,
afável mas secamente:
–
Não!
–
Jura? Não acredito!
A
essa altura, começava a pensar, pelo teor da conversa, tratar-se de pura
gozação. Mas vi que era a sério quando ela tascou:
–
Você passa a impressão de que é bem feliz...
Pedi
breve licença às pessoas na fila. E avancei no debate:
–
Veja, nós não nascemos pra ser felizes. Isso é uma descoberta, um anseio
recente... Há 200 anos, tudo que as pessoas queriam era sobreviver, chegar aos
30 anos... No começo dos tempos, você acha que o homem tinha tempo pra pensar
em felicidade enquanto fugia dos dinossauros e outras ameaças?
Ela
ficou parada, certamente surpresa com argumento tão inusitado. Continuei:
–
Quantas “pessoas felizes” você conhece?
–
Não muitas – ela respondeu, já um tanto desolada.
–
Eu não conheço nenhuma – sentenciei, quase amargo.
Ela
riu um riso sem graça. Aliviei um pouco.
–
O que acontece é que algumas pessoas são bem resolvidas com seu trabalho, têm
uma vida familiar relativamente tranquila... Essas pessoas talvez pareçam
felizes, não demonstram amargura com a vida. E talvez eu seja uma delas.
Prefiro acreditar nisso.
Ela
balançou a cabeça, resignada. E eu, concluindo meu pensamento:
–
“Ser feliz” hoje em dia tem mais a ver com poder financeiro, desejos de consumo
sem-fim, que com qualquer outra coisa. Mas pense comigo: se você não vive
desesperadamente pelo dinheiro, não tem sonhos impossíveis, fica mais fácil
viver, mais fluente, mais tranquilo...
A
essa altura eu já me sentia protagonista da palestra “Lair Ribeiro para jovens
que sonham com a felicidade”. Só que às avessas, ensinando não como ser feliz,
mas como não ser.
–
Se você dedica mais tempo ao lúdico e vive menos pressionado pela corrida do
ouro que virou nosso tempo, você terá mais tempo para o que importa... Isso
talvez seja felicidade, vai saber.
–
É, mas... e o dinheiro? – ela retrucou, mostrando não ser tão avoada assim.
–
Se nos satisfizéssemos em ganhar apenas o necessário para viver bem,
confortavelmente, sem sacrifícios, seria ótimo. Mas nossa natureza sempre pede
mais...
E
isso torna as pessoas bastante infelizes, viram escravas do dinheiro...
A
fila já chiava, por conta da espera, interrompida por esse debate misterioso,
para o qual os demais não foram convidados. Ainda ilustrei rapidamente, para
finalizar, com um filme argentino obscuro que vi há algum tempo, uma espécie de
comédia surreal e filosófica em que dois funcionários de uma companhia elétrica
ou de esgotos vagam pela cidade, vivendo situações estranhas e mesmo
delirantes. Em dado momento, um fala ao outro: “Preciso ir, tenho que dormir,
estou muito cansado.” Ao que o outro diz: “Ok, nos encontramos às sete então?”
E o primeiro diz: “Não, preciso dormir pelo menos oito horas, senão não
descanso.” O outro contra-ataca: “Essa história de dormir oito horas por dia é
uma invenção burguesa. Você acha que no tempo das guerras as pessoas pensavam
nisso? Na Idade Média, você acha que alguém dormia oito horas por dia?” O outro
fica sem palavras.
Para
arrematar nossa conversa, disse-lhe:
–
É a mesma coisa. Um guerreiro assírio não devia pensar em felicidade, apenas em
sobreviver à próxima guerra. Assim é que deveríamos pensar, em sobreviver à
próxima guerra. E só.
Sorri.
Ela também sorriu.
– Fiquei muito feliz de ter você aqui
nesta tarde – ainda lhe disse (enfatizando a palavra feliz) à guisa de ironia,
mas não sem verdade.
Zeca
Baleiro, in www.istoe.com.br
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